Wednesday, April 30, 2008

Cores

*Para Malu, Sara, Rosana, Lívia e Renata

Nunca fora completamente incolor. Sempre tivera suas cores e pinceladas, em diferentes tons, em alternadas intensidades. Umas mais concentradas; outras, praticamente imperceptíveis. Mas inevitavelmente estruturais. Era uma tela vivaz e instigante. Andava, todavia, um tanto acinzentada demais. Faltava-lhe o sentido vibratório das combinações, das novas experimentações. Quando uma cor predomina e deixa de provocar, é simplesmente vital escancarar-se para novos tracejos, nas mais variadas tonalidades.

E no acaso de uma mistura, eis que se descobre um verde único, o qual, numa tentativa de aproximação, comparar-se-ia ao mar de Angra. Nada frio, porém. Contrariamente acalentador, aconchegante, confortável. Diria até, inimaginavelmente, seguro. Acrescentou detalhes ternos, sinceros, amorosos. E trouxe consigo, de mãos dadas, um azul iluminador, meio que de rompante. Dele, eram emitidas ondas que rebatiam muito do já concreto. Questionadoras e incômodas. Mas nem um pouco dispensáveis. De fato, instigava mais e mais riscos na tonalidade curiosa a que chegara sobre as demais.

Quando achava que era gracejo suficiente tanta vida em pouco tempo, novas tintas pularam sobre o quadro. Ainda que seja obscuro, o preto nada tem de frívolo. Deu sobriedade, e fez graça ao encontra-se com os laranjas e cores-de-rosa de outros tempos. O preto bem que tentou ser intermitente. Mas surpreendeu-se quando viu que, na verdade, era tão energizante quanto as demais cores. Ganhava força vibrante com a densa cor-de-aurora arroxeada, surgida elegante e cheia de doçura. Da combinação perfeita entre tons criou-se uma aquarela indescritível, a qual só se tornou compreensível para quem ousou olhá-la.

Na tela antes cinza e agora invadida pela beleza das cores, tomou-se de pronto uma alegria há muito esquecida. A mistura das novas tonalidades com as pinceladas de outrora formou uma obra-prima. Não há, no entanto, raridade estética que não permita novas interpretações e, por que não?, mais e mais interferências. E, por ver as molduras livres, o branco, antes ciumento e desconfiado, aproximou-se e, sem precisar de autorização, (ar)riscou-se, arrebatadoramente, sobre a paisagem abstrata. E, como lhe é essencial, uniu as demais cores em uma só luz, um terno brilho, refletido em vibrantes encontros de vértices, curvas, pontos, respingos.

Aquela tela, uma outra vez, deixara de ser meramente um espaço pálido. Ganhou, gratuitamente, o calor de um arco-íris pleno de beleza e ternura. O calor de combinações de valor inestimável, que tornaram aquela superfície mais que um tecido apregoado, deu-lhe status de obra de arte, aberta e exposta na galeria onde qualquer ser pode entrar: a sincera alma da artista que a imagina.

Tuesday, April 01, 2008

Soneto para minha cara-metade

Minha cara-metade quer se casar
Vai vestir branco, comer bolo, bailar
Minha cara-metade é minha irmã
Uma amiga, minha alma gêmea, um talismã

Que a festa seja extensa
Pela vida afora, plena
E que não faltem motivos
para sua monocova se mostrar

Desejo beijos mil
Amor pulsante
Abraço adolescente

Espero sempre ter faísca no pavil
Confiança, cumplicidade
E uma pitada de olhar inocente.

Caio

Caio nas graças, nas garras tuas
Mas se contrário fosse, e eu não caísse
Jogar-me-ia

Ceilândia: simples e afetuosa

* Crônica publicada no jornal Aqui DF de 27 de março de 2008


Das minhas memórias mais longíquas, recordo-me bem quando, aos 3 anos, freqüentava a escolinha Jeca Tatu, devidamente distribuída entre os cômodos de uma casa na QNP 9. As brincadeiras de "estátua"e a gritaria na hora do recreio reaparecem agora como há mais de 20 anos.

Naquele cenário empoeirado e alegre, vivi desde os primeiros dias de vida até 2006. A rua, por muitos anos de terra e cascalho, tinha casas germinadas e vizinhos que viraram compadres. Entre os dias mais festivos da QNP 5, a chegada do asfalto, no início dos anos 1990, volta como um filme. No quadro-a-quadro, os moradores lavando suas calçadas enquanto a molecada desliza, faceira, sobre a pavimentação ainda quente, com seus patins, bicicletas e skates.

No início da juventude, a graça maior era atravessar a pé o campo de terra em frente à Fundação Bradesco – onde hoje está o Ceilambódromo – e andar uns bons quilômetros até a Feira de Ceilândia para visitar a melhor amiga. O lazer na cidade era parco. Sem teatro, cinema ou sala do tipo, inventávamos nosso próprio entretenimento para o ócio juvenil. E talvez pela falta de iniciativa externa, formamos tantas bandas, grupos cênicos, artistas plásticos "de quintal". E nisso, inegavelmente, a direção do então Centro de Ensino Médio 13 – agora 11 – foi fundamental: as portas da escola estavam sempre abertas para as nossas saudáveis aventuras.

Da igreja São Marcos e São Lucas ao fervilhante Centro. Das salas de aula ao quadradão, onde sentávamos para tocar violão. Dos tempos de voluntariado no hospital regional aos de alfabetizadora no Setor de Chácaras. Em Ceilândia, cresci e aprendi a ser gente. Fui moleca, estudante, adolescente. Chorei pela violência contra os meus e sorri por cada amigo e amiga que ainda levo comigo. E é por tantos momentos inesquecíveis que presto esta modesta homenagem aos 37 anos de Ceilândia, celebrados hoje. A cidade que clama por atenção. Mas que, para os que nela vivem, toca-lhes a alma com simplicidade e afeto.