* A matéria abaixo foi publicada há cerca de dois anos. Posto-a aqui porque é um dos grandes xodós jornalísticos. Foi um mês de apuração - ela seria um especial e virou meia página de jornal. Aqui não está um décimo do que o poeta Mário Quintana foi. Mas está um fragmento deste homem, poeta, pensador, crítico que tanto admiro.
Fala pausada, voz cavernosa, comportamento introspectivo. Um andarilho das ruas de Porto Alegre. Uma pessoa capaz de passar horas calada, observando discussões e reuniões e, repentinamente, soltar uma única e desconcertante frase, uma brilhante sacada. Assim era o homem Mário de Miranda Quintana, que no próximo domingo completaria cem anos.
Em celebração à vida e à obra deste "lírico bem-humorado" – como alguns de seus grandes amigos o definiram –, espalham-se pelo país exposições, recitais, saraus, reedições (leia o quadro). Em Brasília, o projeto Literatura em Conjunto reúne, amanhã, o escritor Fabrício Carpinejar e o jornalista Paulo Paniago para falar sobre a poesia e a prosa de Mário Quintana, além da presença dos atores Adeilton Lima e Catarina Accioly, que interpretarão trechos de sua indefinível e representativa obra.
Gaúcho de Alegrete (nascido em 30 de julho de 1906), extremo oeste do estado, desde os tempos de menino sentia, na arte de escrever, grande prazer. Aprendeu as letras em casa, com o pai. Os anos de estudo oficial foram poucos: concluiu apenas o científico (equivalente ao Ensino Médio atual) no Colégio Militar de Porto Alegre, em regime de internato. Mas sabia, como poucos, dominar a escrita – dizer, em poucas palavras, reflexões sobre o mundo, a existência, os mistérios e desenganos da vida.
Não surpreende, portanto, que ele tenha feito das palavras a sua forma de sustento (financeiro e espiritual) até o fim da vida, quando ainda escrevia em jornais gaúchos. Logo depois de ter trabalhado na Livraria do Globo, em Porto Alegre, e cooperado na farmácia dos pais Virgínia e Celso – mortos, respectivamente, em 1926 e 1927 –, em Alegrete, Quintana ingressou no jornal O Estado do Rio Grande do Sul. Desde então, exerceu as atividades de tradutor (passando para o português clássicos das línguas francesa e inglesa, como Marcel Proust e Virginia Woolf), jornalista e escritor. Sua primeira obra foi o livro de sonetos A rua dos cataventos, pela Editora Globo, em 1940.
Um solitário, que, depois da ida para a capital gaúcha, morou até seus últimos dias entre pensões e hotéis do centro da cidade. "Ele não queria ocupar-se dessas coisas materiais, limpar, passar. Quando eu perguntava a ele se nunca quisera ter casa, sempre respondia: ‘eu moro em mim mesmo’", relembra a amiga e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Tânia Franco Carvalhal, que o conheceu nos tempos de menina, quando seu pai, Aloizio Franco – colaborador do jornal Correio do Povo, onde Quintana publicou o suplemento literário Do Caderno H entre 1953 e 1980 –, levava-a para "ficar ao lado do poeta".
Em 1968, depois de alugar quartos em casas de famílias, foi morar no primeiro hotel, o Majestic, onde viveu até 1980. De arquitetura influenciada pela Belle Époque, situado na estreita Rua da Praia, o prédio, em 1982, foi tombado como patrimônio histórico da humanidade e, no ano seguinte, virou a Casa de Cultura Mário Quintana (CCMQ), instituição cultural do governo gaúcho. Depois, viveu por pouco tempo no Hotel Presidente, na rua Salgado Filho. Não tardou, e o Correio do Povo fechou. "Essa foi uma fase de vida muito complicada. O Correio e o Hotel Presidente estavam fechados e tio Mário estava internado, tinha feito uma cirurgia de catarata nos olhos", conta Elena Quintana, a sobrinha-neta de Mário que o acompanhou de 1979 até a hora de sua morte, e para quem o poeta confiou a guarda de sua obra.
Depois de buscar outro lar para o tio e não encontrar, Elena desabafou com um amigo, Jesus. "Por intermédio do Jesus, o Falcão (ex-jogador de futebol, hoje comentarista da TV Globo) soube, nos procurou no hospital e se colocou à disposição. Disse que tinha um hotel (o Royal), onde meu tio não precisaria pagar enquanto estivesse naquela situação. Pagava quando pudesse. O tio ficou lá até os 80 anos de idade, quando ganhou um quarto no Porto Alegre Residence."
Perseguido por incêndios
Entre as poucas paredes dos cômodos onde viveu, Quintana cuidava de seus afazeres intelectuais. De hábitos noturnos, gostava de deixar a TV ligada, sem som, durante as madrugadas, entre um verso e outro. Assistia a filmes de terror "de baixa qualidade". As películas, aliás, eram outra paixão. "Ele ia quase todas as tarde ao cinema. Nem via qual era o filme em cartaz. Se fosse ruim, dormia."
Sem nunca ter se casado, tinha em Greta Garbo e em Cecília Meireles (um grande e não-realizado amor) suas musas inspiradoras. "Tinham as mulheres que gostavam dele, mas ninguém ia conseguir casar com ele. Tio Mário trabalhava até tarde e depois ia para os bares beber com os amigos", conta, aos risos, a sobrinha. "Cecília foi uma grande paixão. Quando falava nela, era uma emoção enorme." Tanto que, no dia da morte da poetisa, em 1964, a grande amiga Eloí Calage o seguiu por horas, com receio de que ele retomasse o vício da bebida, sustentado desde os 14 anos e abandonado, então, havia pouco tempo.
Mário Quintana foi um "homem perseguido por incêndios", como define Elena. Passou por quatro deles, quando perdeu diversos textos, entre cartas e poemas. Curiosamente, o escritor e amigo Charles Kiefer credita ao poeta o fato de ter conseguido salvar-se de tragédia parecida. "No dia do enterro dele, eu ia da minha casa para o velório, no Palácio do Piratini, quando tive uma sensação ruim. Voltei para casa e o quarto da minha filha estava pegando fogo. O ferro de passar tinha ficado ligado. Na hora, pensei ‘foi o Mário que me avisou’. Foi uma coisa meio espiritual", acredita.
Dono de um humor por vezes até sarcástico, o gaúcho tinha duas únicas mágoas na vida: não ter traduzido dois livros de Proust, porque a Editora Globo argumentou que ele estava demorando muito tempo para fazê-las, e o fato de seu pai, Celso, ter proibido sua tia Béia (que ajudou a criá-lo) de produzir flores de pano para vender. "Seu Celso disse que mulher, na casa dele, não ia trabalhar." O afeto por essa tia era tanto que ele passou a vida inteira jogando o número de seu túmulo no bicho. Acreditava que lhe daria sorte.
Sua vida esvaiu-se aos poucos. Por causa de uma infecção intestinal, foi para o hospital hidratar-se. "Era uma coisa normal em crianças e idosos. Mas ele tinha o hábito de tomar líquido deitado. E acabou engasgando de maneira muito violenta. Teve um edema de glote, depois, uma parada cardíaca e acabou na UTI, quando morreu", recorda Elena. "Na tarde do dia 5 de maio de 1994, eu e a sobrinha dele, Elena, estávamos ao seu lado, segurando-lhe as mãos, na UTI do Hospital Moinhos de Vento. É um dos meus remorsos incuráveis. Quando o deixei para fumar um cigarro, ele morreu", lamenta o contista e amigo Sérgio Faraco.
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